Cláusula de barreira ou cláusula de extermínio?

É um consenso que a crise política que estamos atravessando mostrou a necessidade de uma reforma política profunda. Ano passado, inclusive, o Senado aprovou a Proposta de Emenda Constitucional 36/16. Na Câmara, o tema está sendo discutido em uma Comissão Especial, da qual participo. E um dos temas mais polêmicos dessa reforma é a chamada “cláusula de barreira”.
Faz parte do senso comum a ideia de que no Brasil existe um número excessivo de partidos políticos. De fato, hoje estão registradas 35 agremiações (26 delas com representação no Congresso) e cerca de outras 30 na fila de espera do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Essa situação de aparente permissividade foi criada pela Constituição Cidadã de 1988, quando o país recém saíra de uma ditadura militar e os constituintes não quiseram impor nenhuma exigência quanto à formação e à representação dos partidos no Parlamento. Ao longo dos anos, contudo, com o aparecimento de inúmeras agremiações, começaram a pipocar sugestões para se criar a tal “cláusula de barreira”, supostamente para coibir a proliferação das ditas “legendas de aluguel”.
A PEC 36/16 aprovada no Senado estipula que, para ter acesso ao fundo partidário e ao tempo de rádio e TV, um partido precisa obter, em âmbito nacional, 2% dos votos válidos, além de 2% dos votos válidos em pelo menos 14 unidades da federação. Levantamento feito pelo jornal O Globo, com base no desempenho dos partidos nas eleições municipais, mostrou que, obedecendo a esses requisitos, ficariam de fora partidos ideológicos e/ou históricos como PCdoB, PPS, PSOL, Rede, PV, PTB e PTN, além de SD, PROS e PRB. Ou seja, a ser mantido a PEC aprovada em primeiro turno no Senado, apenas nove partidos (os maiores) terão condições de ter representação no Congresso Nacional: PSDB, PMDB, PT, PSD, PSB, PDT, PP, DEM e PR.
Os argumentos a favor da cláusula de barreira são aparentemente fortes: diz-se que temos um multipartidarismo exacerbado, sem nenhum limite à criação de novos partidos; que o sistema de “presidencialismo de coalizão”, em razão da fragmentação partidária, cria instabilidade, pois dá excessivo poder de barganha a legendas eleitoreiras, o que obriga o Executivo a fazer concessões fisiológicas para poder governar. É verdade que nosso sistema tem muitas imperfeições e precisa ser melhorado. Mas será que, ao introduzirmos a cláusula de barreira, não estaríamos na verdade exterminando a representação da diversidade política brasileira?
A primeira objeção que faço é que a exigência de uma cláusula de barreira deixaria o sistema político à mercê dos grandes partidos. Grandes partidos podem trazer estabilidade política, mas nem por isso eles se comportam como Madres Teresas de Calcultá. Basta lembrar os principais envolvidos nos recentes escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato, por exemplo, foram os grandes partidos, não os pequenos.
Além disso, a cláusula de barreira, a pretexto de combater a proliferação de legendas de aluguel, comete uma crassa injustiça, pois retira do cenário político vários partidos históricos e/ou ideológicos, como PCdoB, PV, PTB, PPS, Psol e PTN. Se há partidos pequenos que surgem e desaparecem de acordo com a oportunidade e conveniência, há outros que têm uma história de longa data, ideologia consolidada ou propostas inovadoras.
A introdução desse mecanismo também comprometeria seriamente a representatividade e o multipartidarismo, previstos no artigo 1º da Constituição, em favor de uma vã promessa de estabilidade. O multipartidarismo é a essência do nosso sistema político, além de garantir a preservação dos direitos de vastas minorias políticas e ideológicas.
Acredito que o fim das coligações proporcionais e a proibição do financiamento empresarial dos partidos, já consolidada, serão suficientes para expurgar as legendas de aluguel do sistema político brasileiro.
Poderia ser objetado que isso não é suficiente, pois ainda haverá um grande número de partidos. É possível, mas o pior seria amputar a democracia em nome da “perfeição”. Esta é para os deuses, não para a humanidade. “Se o povo fosse composto por deuses, o governo seria democrático. O governo perfeito não é para os homens”, dizia Jean-Jacques Rousseau. Se pudermos aperfeiçoar o nosso sistema mantendo a diversidade nacional por meio do multipartidarismo, teremos mais chance de ter estabilidade e coibir abusos. Caso contrário, vamos amputar a democracia em nome do aperfeiçoá-la.


Renata Abreu é presidente nacional do Podemos.

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