- Por Alvaro Dias
Nenhum país concede o foro por prerrogativa de função, conhecido como foro privilegiado, com tanta amplitude como o Brasil. Aproximadamente 55 mil funções são beneficiadas por esse dispositivo, que prevê o julgamento de membros dos três Poderes e do Ministério Público somente pelas cortes superiores. Promotores, juízes, parlamentares, governadores, ministros e o chefe de Estado estão sob esse guarda-chuva jurídico, exceção generosa ao artigo 5º da Constituição, que determina que “todos são iguais perante a lei”.
Comparando a situação brasileira a alguns dos principais países ocidentais temos ideia da dimensão e do disparate desse privilégio. Os Estados Unidos, paradigma da democracia, não preveem o foro privilegiado a ninguém – por isso o então presidente Bill Clinton foi julgado em primeira instância por molestar sexualmente uma estagiária da Casa Branca. Na Suécia, somente ao rei é concedido responder aos tribunais superiores, e o mesmo acontece na Alemanha com o presidente da República, que responde pelo Estado (o primeiro-ministro, responsável pelo governo, submete-se à justiça comum). Na China, sob o regime de partido único, o Comunista, somente os membros do Congresso Nacional do Povo – e eles são 2.987 – desfrutam do foro privilegiado, que se limita à autorização do parlamento para que se submetam a julgamento.
O foro por prerrogativa de função remonta à Constituição de 1824, promulgada por Dom Pedro I, que aboliu os privilégios de nobres e militares, mantendo os do clero, e concedeu tratamento especial somente aos ocupantes de cargos públicos, restritos ao exercício desses cargos. A primeira constituição republicana, de 1891, aboliu os privilégios do clero e manteve o foro por prerrogativa de função aos ocupantes de cargos públicos. Desde então, todas as Cartas Magnas têm preservado e ampliado esse instituto.
Criado para proteger os ocupantes de funções públicas de ações jurídicas motivadas por interesses políticos ou outros, o foro por prerrogativa de função transformou-se em sinônimo de impunidade.
Os números da finada Lava Jato ilustram essa afirmação: em seis anos, a operação, a maior da história contra empresários, agentes públicos, lobistas e doleiros que saquearam os cofres públicos, resultou na condenação à prisão em primeira instância de 285 denunciados e de 165 em segunda – entre eles o ex-presidente Lula. Quantos portadores do foro privilegiado foram condenados? UM!
Setenta por cento dos brasileiros exigem o fim do foro privilegiado, constatou o Instituto Datafolha em maio de 2017, ano em que o Senado, após quatro anos de tramitação, aprovou o Projeto de Emenda Constitucional 333, de minha autoria, limitando o tratamento jurídico diferenciado a cinco funções: presidente e vice-presidente da República e presidentes do Senado, Câmara dos Deputados e Supremo Tribunal Federal.
O projeto chegou à Câmara dos Deputados em 6 de junho de 2017 – há cinco anos ou 1.270 dias, portanto – e encerrou a maratona das comissões no ano seguinte, tornando-se apto a ser submetido ao plenário. E, desde então, dormita nos escaninhos daquela Casa, em afronta à maioria esmagadora dos brasileiros, que exigem que seus representantes, juízes e promotores submetam-se ao artigo 5º da Constituição.
Para uma legislatura iniciada com a promessa de acabar com os privilégios e se submeter à ética e ao interesses público, seu ocaso, que se aproxima velozmente, mostra que, mais uma vez na história do Parlamento, tudo não passou de sonho em noite de verão.
Conteúdo publicado no Jornal Estado de São Paulo.
Foto:Thati Martins